quarta-feira, 30 de abril de 2014

O amor que permanece!


Eu tenho uma lembrança que sempre me tira sorrisos de alegria e lágrimas de saudade... Minha mãe está na cozinha de chão vermelho brilhante fazendo algo para comer, no rádio toca alguma música daquelas que meu vô lá no interior adora ouvir... eu passo por ela olhando para seu rosto e ela me dá um sorriso daqueles que damos para os filhos quando estamos ocupados demais para abraçar... E então vejo meu pai, sentado no degrau do meio da escadinha da lavanderia, o muro é maior que eu e não podia ver o quintal dos fundos que dava para a casa dos vizinhos, ele está com o violão preto no colo sem tocar com um pacotinho de cordas do lado... e quando ele me vê dá aquele sorriso que só quem conheceu meu pai sabe como é... Eu não lembro quando foi nem que dia era, não sei quantos anos tinha mas a imagem é muito nítida como se estivesse acabado de ver um filme. Lembro do chinelo nos seus pés, das curvas do seu cabelo, das marcas que se faziam nos olhos quando ele apertava a vista para falar... E então o tempo passa e eu já sou uma mulher, meu pai está sentado no quintal de sua casa lá em Santa Cruz e em sua cabeça já vejo as marcas e cicatrizes da cirurgia... ele está com um pé na bacia de água quente e o outro no meu colo e em seu rosto o mesmo sorriso e em seus olhos as mesmas marcas... Foi a última vez que visitei meu pai, ele me pediu para cortar suas unhas dos pés... estávamos sentados no sol em frente a roseira e ele ria e resmungava porque eu não conseguia cortar bem curtinha como ele queria. Do lado minhas filhas brincavam e na minha barriga o Fabinho já crescia... e seria tudo perfeito se não houvesse sobre nós a nuvem do fim que todos nós sabíamos que se aproximava... Lembro que olhei para ele e me veio na lembrança o dia do sorriso na lavanderia e eu levantei e pedi pra ele esperar que ia pegar um creme... lembro se secar as lágrimas e voltar sorrindo para terminar suas unhas e lembro do aperto no peito que senti ao perceber que minha mãe já não estava entre nós e que em breve meu pai também não estaria... A última vez que vi meu pai vivo ele estava acenando para nosso carro com aquele sorriso que era só dele e com as unhas dos pés bem cortadinhas, ele já não escondia a cicatriz com chapéu e parecia saber que toda a luta não daria o resultado que eu esperava... Nos nove meses que ele ficou doente eu praticamente morava com ele e foram muitas nossas conversas e muitos nossos silêncios... eu confidenciei muitas coisas pra ele e ele me falou de muitas coisas que sei que ele só falou porque sabia que em breve iria partir... algumas coisas ele falava de olhos baixos pra que eu não visse a tristeza e outras ele falou de olhos brilhantes e serenos fazendo questão de me mostrar que tinha valido a pena viver... Ele me falou das pescarias, das pequenas conquistas que ele se orgulhava, das dores que carregava, da saudade que guardava, ele me falou da minha mãe e do último dia em que eles conversaram na UTI do hospital que ela estava internada e finalmente entendi porque ela chorou naquele dia... minha mãe nunca chorava mas naquele dia ela chorou... E meu pai perguntou o que era MIMIMI e foi chorando muito que falei pra ele que MIMIMI era chorar... e ele também chorou porque disse que as últimas palavras da minha mãe pra ele foi MIMIMI... Depois dessa última visita eu não mais pude ver meu pai, um mês se passou e eu iria viajar pra ficar com ele no dia 5 mas dia 30 ele faleceu e eu corri muito para chegar a tempo mas não consegui me despedir dele. Hoje se passaram 7 meses mas ainda sinto tanta saudade daqueles dias... Meu pai me deixou muita coisa boa, muitos sentimentos bons... o bercinho e o quartinho do Fabinho eu só pude comprar porque ele me ajudou mesmo sem saber... Mas o que ele me deixou de mais importante foram suas palavras, gravadas em um bilhete escondido, perdidas até poucos dias entre as lembranças que guardava pra mim... Meu pai me deixou a certeza da confiança que tinha em mim, me deixou as confidências de uma resignação profunda, me deixou o exemplo de um ser humano único, me deixou a lição de que nem tudo precisa ser dito, a lição de que julgamentos nem sempre precisam ser feitos, de que a única maneira de ser feliz é saber olhar para o bom e fechar os olhos para o que não é tão bom assim... Meu pai me disse em suas poucas palavras o quanto me amou, o quanto amou minha mãe, o quanto amou nossa história... E me ensinou que a distância não é nada, que o que é verdadeiro permanece. Hoje, aqui na minha casa, com minhas filhas e meu filhinho no colo, eu olho ao redor e me sinto grata pelas lições que ele me deixou... A saudade é grande, a vontade de ver e de conversar são enormes, o som do violão, as curvas do cabelo, as marcas nos olhos, as palavras e até mesmo o silêncio... tudo é saudade... Mas eu carrego comigo o que de mais valioso ele tinha na vida, como ele mesmo me escreveu... o que ele tinha de mais valioso era somente de duas pessoas nesse mundo e que com sua partida seria só meu... que era nossa história, as lembranças da nossa família, o amor que nos uniu durante toda sua vida, ainda que por muito tempo distantes mas sempre vivo no seu coração... o que ele me deixou foi amor... o amor mais profundo e verdadeiro que conheci, o amor que sobrevive, que ultrapassa, que não morre, que permanece mesmo na ausência, que pulsa mesmo na distância. O amor que ainda hoje me sustenta nos dias tristes e que me impulsiona a ser uma pessoa melhor a cada dia. Algumas pessoas falam com surpresa da maneira como meu pai e minha mãe partiram, de maneiras tão parecidas e praticamente juntos... mas eu não me surpreendo... eles aprenderam o amor de maneiras diferentes, viveram o amor de maneira diferentes, me amaram de maneira diferentes mas foi de maneira igual que me ensinaram o amor... Dizem que planejamos nossa vida antes mesmo de nascer e eu fico aqui imaginando quanto amor faz uma pessoa planejar viver uma vida de amor por um filho... Meu pai, assim como minha mãe, viveram suas vidas inteiras por uma única pessoa, movidos por um único sentimento... eles viveram por mim, para me amar, para me amparar e para me ajudar a entender esse amor tão pleno e resignado... Poucos podem entender, poucos vão conseguir compreender, poucos conseguiram ver isso... mas ainda assim é o que de mais valioso eu tenho em minha vida e é isso que quero que meus filhos percebam no futuro quando buscarem em minhas palavras as imagens do vovô e da vovó... Amor...